“Higesipo Brito” por Higesipo Brito (Cap. I)
Secundo Augusto de Brito – Maria Margarida de Brito
AS MEMÓRIAS DE UM MENINO, DE UM RAPAZ, DE UM HOMEM
HIGESIPO BRITO
Residentes em uma casa de pau-a-pique, em uma clareira no meio de uma enorme mata-virgem, localizada em uma região de nome Floresta, um casal de parcos recursos, com três filhos, aguarda a chegada de mais um filho. As águas de uma chuva leve. Mansinha. Rolavam do telhado como se melodiosamente cantassem.
O casal ligeiramente apreensivo. Porém alegre. Aguardava a chegada de mais um filho. Tudo pronto para a recepção dele ou dela. Naquela época – principalmente na roça – o sexo somente era conhecido após o parto. A parteira cantarolava baixinho. Procurava assim entreter a paciente. Eis que é chegado o momento. Tudo pronto, e o trabalho do parto vê-se compensado com a chegada de um robusto garoto que, na pia batismal, recebeu o nome de Higesipo.
Nesse local, nessa clareira de uma mata virgem, Higesipo, com seu Pai e sua boníssima Mãe [Maria Margarida de Brito], viveu pelo período de apenas um ano, pelo motivo de ter a família transferido sua residência para a localidade de Pirapetinga. Um lugarejo próximo da Vila de Catas Altas da Noruega (hoje cidade), onde viveu, ininterruptamente, até a idade de nove anos.
Dos nove aos quatorze anos, Higesipo trabalhou como empregado de uma vendinha na roça, numa localidade chamada Jequitibá. Distante seis quilômetros da então vila. Mas como ali o comércio, movimentado somente à noite, era fraquíssimo, Higesipo era responsável pelas atividades gerais externas da casa, como desfazer o milho, levar ao moinho, recolher o fubá, preparar e dar ração aos porcos – magros e de engorda – além das viagens que fazia a título de cobrança aos devedores de mantimentos adquiridos na venda. Além dessas atividades, havia o serviço externo de cobrança, que era processado em regiões distantes. E isso era feito a cavalo.
Aos cinco anos de idade, Higesipo exercia funções ligadas à luta pela sobrevivência da família. Descalço. Com os pés finos. Acompanhava os seus irmãos, José e Amantino, nas buscas de animais no pasto. Atravessando – muitas vezes – moitas de sapé. Cujos brotos são verdadeiros espinhos. Muito embora chorasse nesses momentos, não era atendido. Os irmãos gritavam-lhe: corra! E saíam correndo. Justamente para, com os pés, amassarem os brotos, impedindo-os assim de penetrarem.
Da idade de cinco anos aos sete, Higesipo – com mais oito garotos – frequentou – na própria casa – aulas de português e matemática ministradas pelo seu próprio pai. Período em que – também com seu pai que era músico – estudava as lições preliminares de música. Secundo Augusto de Brito – professor que não havia, em tempo algum, frequentado escola – o verdadeiro autodidata. Por não terem sido submetidos ao ensino de História, Higesipo e seu irmão Amantino foram matriculados numa Escola Pública, onde permaneceram por dois anos, findos os quais, Higesipo passou a ocupar as funções, ou os afazeres do seu já citado primeiro emprego na vendinha.
Decorridos cinco anos desse primeiro emprego, [aos 14 anos], ansioso para tomar parte de uma das Bandas de Música – eram duas – existentes na Vila de Catas Altas da Noruega, Higesipo, com o coração despedaçado. Chorando copiosamente. Abraçado à sua patroa D. Augusta que, também chorava. Despedia-se do emprego. A pé. Com uma trouxa de suas roupas. Caminhava tomado de uma grande tristeza. Higesipo gostava muito do emprego, e ainda mais de seus patrões. Ao chegar no alto, sua última visão do lugarejo Jequitibá, onde existia a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Higesipo – em pranto – despediu-se do lugarejo, rogando à Virgem proteção aos seus futuros passos.
Capela de Nossa Senhora dos Remédios – Distrito de Jequitibá
Catas Altas da Noruega-MG – construída nos Anos 1900
Volta-se aqui – no tempo e no espaço – para descrever algo da vida da família naquela localidade de Pirapetinga, no período de janeiro de 1918 a fevereiro de 1929, quando a família composta de dez pessoas, transferiu-se de Pirapetinga, para a Vila de Catas Altas da Noruega. Se, se fala da família, torna-se necessário e até mesmo prazeroso, enumerar nominalmente, seus membros, que eram os seguintes: Secundo Augusto de Brito, Maria Margarida de Brito, José Geraldo de Brito, Maria da Conceição Brito, Amantino Arcanjo de Brito, Higesipo Augusto de Brito, Margarida Maria de Brito, Guilhermina Maria de Brito, Francisco Didácio de Brito e Antônio Saturnino de Brito [Cícero Roberto de Brito ainda estava por nascer]. Todos – com exceção dos mais novos – viviam empenhados nos trabalhos em prol da sobrevivência. Deste modo, iniciou-se uma fase de progresso há muito sonhada pelo casal-chefe.
Quando Secundo mudou-se – com a família – para Pirapetinga, foi já alimentando o sonho de possuir um estabelecimento comercial. Por isso, ao construir a nova residência, fez constar da planta – imaginária – duas portas para a referida finalidade. Instalou-se assim com uma vendinha de “secos e molhados”, propiciando destarte a aquisição do terreno anteriormente citado [onde Higesipo – e seus dois irmãos mais velhos – amassava os brotos de sapé com os pés feridos].
Prevalecendo-se no campo comercial, o pai de Higesipo adquiriu mais um terreno, com área de quatro alqueires e meio (19,8 hectares) no lugar denominado Tanque-Seco, distante 2 quilômetros de Pirapetinga, onde, inicialmente, derrubou o mato de uma pequena área, efetuando o plantio de café, sendo que a maior parte do terreno era coberta de capim meloso.
Desse terreno, Higesipo guarda na sua lembrança alguns acontecimentos que ficaram marcados, como sejam: o primeiro, quando da retirada da lenha oriunda da derrubada e queimada do mato onde se plantou o café. Às 2 horas da madrugada, Higesipo acompanhava os seus irmãos na busca dos bois-carreiros arrendados com o carro – para transportar a lenha oriunda da derrubada para o plantio do café. Havia um dos bois que não era manso e ameaçava avançar. Momento em que urrava e raspava as patas no chão. Momento em que tornava-se necessário priorizar a partida. Avançar-se contra ele, desferindo cacetadas em sua cabeça. Nessa atividade, foram transportados, em poucos dias, vinte e um carros de lenha (cerca de 42 metros cúbicos).
O segundo, foi quando um fogo devastador, vindo de longe distância, teve que ser enfrentado nas divisas dos terrenos do Tanque-Seco. A qualquer custo. Ele não podia ultrapassar a divisa. A ordem de Secundo era severa. Havia uma cerca de arame farpado construída recentemente. Motivo pelo qual existia o favorecimento de uma picada. Secundo ordenou: “Vamos fazer um rastilho”. Rastilho é uma faixa capinada de mais ou menos um metro de largura, e na medida em que ia o rastilho ficando pronto, ia-se ateando fogo de encontro ao devorador. Recordo-me que, tendo acontecido um redemoinho, o fogo saltou para os terrenos então protegidos. Momento em que, num combate a qualquer custo, Higesipo e seus irmãos viram-se circulados de chamas altíssimas, tendo que prevalecerem de um único recurso: o de transpô-las de um salto. Dominado e extinto o pavoroso incêndio que vinha não somente destruindo matas mas também matando criações, passa-se à descrição do terceiro episódio de sacrifícios enfrentados, marcantes de uma vida.
Princesa, Alemanha, Salina…
Era obrigação de Higesipo cuidar do gado leiteiro. Tirar o leite – as vacas, durante a noite, ficavam no Patrimônio da Igreja – praticamente na rua. Mas com a aquisição de umas outras do tipo, ou melhor da raça zebu e, portanto, demasiadamente ariscas e bravas, principalmente em época de novas crias, o gado leiteiro passou a ser levado diariamente para o pasto. Motivo pelo qual, nas épocas de inverno, com o capim coberto de geada, o gado, defendendo-se do gelo, acomodava-se debaixo da capoeira. De cima da porteira o menino chamava: Tió… Tió… Tió… Tió… Princesa!… Alemanha!… Salina!… Nada. As vacas, dentro do mato, protegiam-se do gelo. O pequeno retireiro, descalço, tinha antes já acendido o fogo e aquecido os pés que se achavam entanguidos. Mas o que fazer? Enfrentar a geada. Tirar as vacas da cama e tocá-las para o curral, a fim de tirar o leite. Era por demais penoso. Simplesmente triste. Ocasião em que o pai do pequeno retireiro efetuou as matrículas sua e de seu irmão na Escola Pública.
O leite produzido, quase na sua totalidade, era usado na fabricação de queijo, em virtude da existência de várias cabras leiteiras, cuja produção diária era da ordem de quatro litros, que eram consumidos na alimentação familiar. Também a fabricação de queijos – manual – era obrigação de Higesipo. Os irmãos mais velhos eram lotados nas obrigações externas.
HIGESIPO BRITO
Rio Acima, SET 1995.
A narrativa do autor prossegue em próxima postagem.
Referência:
BRITO, Higesipo Augusto de. As memórias de um menino, de um rapaz, de um homem [Rio Acima, set. 1995. 17 f. Mimeografado]. Chá.com Letras, ago./set./out., 2013.
Revisão, pesquisa de imagens e edição:
Leila Brito
Ilustração:
Foto 1 – Secundo Augusto de Brito e Maria Margarida de Brito – autor desconhecido. Data presumida: década de 1940. Acervo da Família Higesipo e Maria Brito.
Foto 2 – Capela de Nossa Senhores dos Remédios. Foto de autor desconhecido. Acervo da Prefeitura Municipal de Catas Altas da Noruega. Disponível em:
<http://www.catasaltasdanoruega.mg.gov.br/mat_vis.aspx?cd=6511>.
Foto 3 – Vacas da raça zebu – Foto de autor desconhecido. Disponível em: <http://www.zebuparaomundo.com/zebu/index.php?option=com_content&task=view&id=357&Itemid=46>.
Parabéns, exemplo de vida, lembrou muito a infância de meu pai também ( ou melhor a infância que não tiveram ).
Parabéns também pela narrativa, bjs
Cara Rosângela…
Realmente, chama a atenção as condições de vida das crianças da época, quando a sobrevivência era praticamente alcançada a laço, caso contrário nem mesmo se tinha acesso a alimentos.
Este é apenas o primeiro capítulo dessa história. Vou comunicar você dos próximos, para que possa acompanhar a saga do meu pai.
Bem-vinda!
Abraço,
Leila
Obrigada por compartilhar a sua história do vovô! São muitas revelações que nem fazia ideia.
Querida Aninha…
Publicar este escritor sensível e envolvente que foi o seu Vô Higesipo é uma alegria para mim e uma honra para Chá.com Letras.
Eu revisei o seu texto ao perceber o erro de digitação.
beijo…
Leila
Linda história, Leila.
Uma história feita de bons exemplos, não de conselhos…
Vida difícil, só não sobrava tempo para o ócio…
Mas havia uma família, unida pela manutenção, pelo progresso e pelo respeito.
Diferente do individualismo de hoje e onde pais tem dificuldades em se fazerem respeitar pelos filhos…
Mas ainda temos os descendentes das antigas gerações, só não dá para prever como será a geração dos descendentes do Facebook e dos Smartphones…
Parabéns Sra. remanescente de uma família “das antigas”.
Ana Miranda…
Estava com saudade de sua energia aqui no Chá.com Letras.
Abraço…
Maria Regina…
Você disse tudo.
E sobre o que ocorre, nesta era pós-moderna, com a educação de filhos, deixo-lhe este link de uma crônica da jornalista Eliane Brum (para mim, uma das mais competentes profissionais do jornalismo nacional), intitulada: “Meu filho, você não merece nada”.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI247981-15230,00.html
Abraço…
Oi Leila!
Li o texto sugerido, muito bom mesmo, obrigada.
Abraço grande.
Cara Regina…
Feliz em receber seu carinho e atenção.
Abraço…
Muito obrigada, Leila!
Esta foi a melhor homenagem que nosso pai poderia receber. Aguardo os próximos capítulos desta história, de um Homem muito inteligente, corajoso, trabalhador, criativo, amoroso e amado. Saudade eu sinto todos os dias e assim venho mantendo sua presença em mim.
beijos!
Clarinha.
Não tem nada que me agradecer, Clarinha.
Como já me expressei em outro comentário, publicar este escritor sensível e envolvente que foi o nosso Pai e a sua valiosa história de vida é uma alegria imensa para mim e uma honra memorável para o Chá.com Letras.
beijo…
Leila
Leila, andávamos carentes deste chá que alimenta a alma com cultura e arte. Parabéns pelas recentes postagens com sabores diversos!
Beijos
Marise Ribeiro
E eu carente da presença aconchegante dos meus amados leitores, Marise.
Obrigada pelo carinho.
Abraço…
Muito Bommmm!!!! De grande Valia 😉 <3
Rico e apaixonante relato das aventuras e conquistas de um sonhador, capaz de romper distâncias, dores e transformar o tempo em luz e força.
Parabéns, Leila, pelo pai, pela história e pela emoção capaz de inspirar novos caminhos.
Abração